Então, segundo postagem anterior, segue aqui a terceira parte do texto que escrevi para o Colóquio de Montevideo, do qual participei mês passado.
Reitero que ele foi escrito para ser lido ao vivo, e isto é o que lhe concede o caráter coloquial.
Creio que mais uma postagem dê conta de chegar ao final do texto.
Boa leitura e um abraço.
(...)
Sobre esta dimensão política da forma, Marianne Van Kerkhoven[1], faz um estudo que se detém na relação entre a ética e a estética na criação em teatro, e o faz inicialmente explanando um contexto histórico, reportando ao período que se iniciou no final dos anos 60 e perdurou na década de 70: Marianne afirma que os anos 70 foram marcados pelo trabalho coletivo, pelo desejo de dar a palavra a todos aqueles que não se escutava; que na prática artística tentava-se ter um diálogo direto com o público. E observa que no teatro de hoje convivem coletividades de outra natureza: o ator, o material humano, tem se tornado o elemento primário e essencial do processo criativo. Se recorre à personalidade global dos atores, não somente às suas atitudes técnicas. Não há a necessidade de ouvir uma só voz, de ouvir a um grupo inteiro pondo-se de acordo sobre suas ideias; pelo contrário, se quer ouvir vozes diferentes, se quer fazer presente o pensamento individual de cada colaborador. Os atores não são apenas executantes, mas se convertem em co-criadores, que buscam esta mesma relação com os espectadores – estes não são considerados como consumidores passivos, mas como indivíduos ativos, que pensam, sentem e se expressam. O pensamento político que se encontra hoje no teatro está muito condicionado por esta atitude ética.
Tal processo é resultado do fenômeno de desmantelamento das crenças políticas dos anos 70, quando se acreditava que todas as expressões da realidade social formavam parte de um todo controlável e inteligível. A sociedade estaria composta por uma base e uma superestrutura entre as quais havia movimentos complexos, mas que seriam possíveis de se controlar. Uma vez sob controle se poderia desmontar essa estrutura e reconstruí-la de maneira mais justa. As categorias do pensamento marxista, segundo Marianne, impulsionavam as pessoas na direção de um otimismo entusiasta no que tange à possibilidade de mudança desta organização humana. Mas as grandes mudanças precisaram esperar e a contradição entre a realidade e os pensamentos se tornou cada vez maior. A realidade começou a parecer mais ilegível. A grande construção se fazia em pedaços e todos começaram a se ocupar dos fragmentos na tentativa de levar a cabo em um campo mais restrito pelo menos alguns dos objetivos.
Atualmente há um retorno para este caminho desde o fragmento até a unidade, até a totalidade, mas sem um marco estrito em que tudo tem seu lugar preciso. Marianne defende que talvez se encontre aí a significação profunda da vulnerabilidade da arte atual. Hoje estamos obrigados a ler a realidade mais profundamente e com mais precisão do que se tem feito antes. A intuição se converte nesse momento em uma íntima companheira.
O paradoxo do compromisso atual do artista, segundo a autora, reside no fato de que o mesmo artista, que era uma força social progressista, está se tornando um defensor dos “velhos valores”. E a pergunta que daí extrai é: ele se tornou conservador ou é o mundo que está invertido? O que contesta as tendências gerais da sociedade, neste momento, luta contra a “ficcionalização” da vida através dos meios de comunicação, contra uma vida que se desenvolve em uma “realidade” virtual, defende a velha cultura, a leitura lenta dos clássicos da literatura contra as imagens a toda velocidade do videoclipe, luta contra o consumo superficial de uma vida atual que se vê reduzida a clichês. De uma situação tal nasce uma turbulência, um sentimento de confusão individual, de impotência que expressam muitos artistas atuais.
[1] A fusão da ideologia e da estética no teatro contemporâneo Texto proveniente da participação da autora no Seminario de Estudios Teatrales da Universidad de Málaga, que a convidou para falar em forma de conferência sobre a ideologia e a estética na arte contemporânea, mais precisamente no teatro.
(CONTINUA...)
Acima, fotografia de elementos cenográficos do espetáculo O Retrato, do grupo Neelic, dirigido por mim. A foto é de Kiran Federico León.
Nenhum comentário:
Postar um comentário