Espaço de compartilhamento, registros, sensações, reflexões, discussões, expressões, imagens, sons, vazios... de diversos elementos da forma e do conteúdo da arte e da vida. Blablabla...

"(...) não o grites de cima dos telhados, deixa em paz os passarinhos (...)"

"(...) Quem pode, pode Deixa os incomodados que se incomodem (...)"

"(...) um coturno (...) sapatilhas de arame (...) alpercatas de aço (...) pés descalços sem pele (...) um passo que a revele (...)"

"(...) Pra pedir silêncio eu berro Pra fazer barulho eu mesma faço (...)"

segunda-feira, 27 de setembro de 2010

Crítica

Pessoal, segue abaixo a crítica que escrevi a convite do Festival Porto Alegre em Cena deste ano, para postagem no blog deles, sobre o espetáculo Corte Seco.

Corte seco




Em cena, três televisores sobre suportes com rodinhas. Uma mesa técnica à direita de quem olha. Um amontoado de cadeiras – de diversos tipos – à esquerda.

Quando chegamos ao teatro, os técnicos e a diretora estão trabalhando em sua mesa, à vista do espectador. Logo os atores começam a surgir, e se misturar à plateia, conversando trivialidades com algumas pessoas do público, escolhidas aleatoriamente. O palco, descortinado, evidencia todas as suas paredes. Luz branca. A diretora pergunta ao microfone: “Podemos começar?”. Informa que em cinco tempos vamos começar. Conta até cinco e a atriz Branca Messina começa a contar uma história ao público, sobre seu avô, sua avó e um baile de Carnaval. Exceto pelo fato de que, muito frequentemente, tudo aquilo que está no palco é escolhido pela equipe artística, não se pode perceber de imediato se a atriz está interpretando um texto ou contando uma passagem de sua vida. E esta é a atmosfera do espetáculo até seu final. Histórias diversas vão se entrecruzando, em um aparente misto de ficção e realidade e em uma dinâmica que realmente nos remete à da vida contemporânea: interrupções bruscas ocorrem entre uma e outra passagem, justificando assim o título do espetáculo.

As cadeiras que estavam inicialmente amontoadas vão sendo dispostas de diferentes formas, de acordo com cada história que vai sendo contada. O espetáculo é desconstruído, a narrativa é fragmentada, o sentido de improvisação é trabalhado de forma explícita e o tratamento do acontecimento teatral ocorre com uma certa crueza que o torna interessante e aparentemente inovador ao público. De fato, os elementos que compõem a peça, se considerados separadamente, não apresentam novidade alguma. A maneira como foram arranjados é o fator que consegue surpreender. O jogo, aqui, é aberto, compartilhado. Chego, então, onde desejava: o jogo, ao meu ver, é o grande mérito do espetáculo.

Nem a escolha por uma poética contemporânea, nem a capacidade técnica dos atores, nem as histórias que vão sendo presentificadas, ou a forma espontânea como o espetáculo se desenvolve (com atuações trabalhadas muitas vezes sobre a noção de casualidade), tampouco os elementos compositores do espetáculo, tais como iluminação, figurino e trilha sonora, superam na peça este seu elemento fundamental. A própria mediação tecnológica, que situa concretamente o espectador em uma encenação contemporânea, sobretudo nos momentos em que alguns atores saem teatro afora, indo até o saguão e mesmo até a avenida onde o edifício se encontra (tudo isso sendo monitorado pelos televisores em cena), não pode ser considerada como o essencial do trabalho. Em Corte seco, o jogo é o fator que permite a relação com o público de forma eficaz e dinâmica. Segundo Viola Spolin, autora internacionalmente conhecida por sua contribuição para a prática das artes cênicas, os jogos desenvolvem as técnicas e habilidades pessoais necessárias para o jogo em si, através do próprio ato de jogar, e no momento em que a pessoa está jogando, recebendo toda a estimulação que o jogo tem para oferecer, verdadeiramente aberta para recebê-las.

No espetáculo da Cia. Vértice de Teatro, tal desenvolvimento de técnicas e habilidades é dividido com o espectador, que, implicado intelectualmente pela obra, se deixa também experienciar esta abertura. Os atores são estimulados, durante o acontecimento cênico, pela diretora Christianne Jatahy, que sorteia a ordem das cenas durante a encenação. As regras de cada jogo vão sendo informadas ao público, que completa, neste sentido, o terceiro e fundamental lado de uma relação aberta e triangular, aspecto evidenciado pelas luzes da plateia, que permanecem acesas durante a encenação, apenas com variações de intensidade. O ato de jogar em cena é complementado por verbos determinados nas cadeiras manipuladas durante o acontecimento: descrever, narrar, interiorizar, dialogar, caracterizar. E, pela utilização de um rolo de fita crepe, elemento simples, mas que por vezes torna muito mais interessante o desenvolvimento da ação, a relação com a ludicidade da cena e as imagens criadas. Os verbos vão determinando a forma que o jogo acontece, entretanto, até esta regra é extrapolada, por vezes, em favor da poética. Em Corte seco, o trabalho dos atores Eduardo Moscovis, Marjorie Estiano, Leonardo Netto, Branca Messina, Cristina Amadeo, Daniela Fortes, Felipe Abib, Paulo Dantas, Ricardo Santos, Stella Rabello, Thereza Piffer e da diretora ocorre aos olhos do público através de características que dizem respeito às noções de teatro pós-dramático, que trata o teatro como arte que acontece na presença ativa mútua entre aqueles que a executam e seus espectadores. Estes últimos, inclusive, além de terem participado alegremente quando convocados durante o decorrer do jogo, saíram do teatro surpreendidos e desassossegados. Sob minha ótica, em Corte seco, ocorreu uma relação teatral, o que significa dizer que o jogo está valendo.

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Desirée Pessoa
Diretora de teatro, atriz, pesquisadora e professora. Dirige o Grupo Neelic. Mestranda do PPGAC-UFRGS. Graduada em Teatro pela UFRGS. Seu espetáculo mais recente é Sem açúcar. Tem estreia agendada para novembro de 2010 do espetáculo Primeiro amor, inspirado no texto homônimo de Samuel Beckett.

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